O vinho é um elo civilizado e civilizante da humanidade, fundindo-se na própria História das mais altas culturas. Hubert de Montille, com grande lucidez, afirma que "onde há vinhas há civilização, e não existe barbárie": Enquanto os destilados fortes, grandes responsáveis pelo alcoolismo endêmico e letal, têm o consumo controlado e coibido por preços proibitivos no mundo civilizado, aqui uma garrafa plástica de cachaça pode chegar ao consumidor final quase ao preço de água mineral. O consumo nacional de cachaça, portanto, é de 15 litros per capita, contra 1,8 litros de vinho. Atualmente a legislação limita o teor alcoólico da aguardente em 54% e da cachaça em 48%, ou seja, o consumo brasileiro de cachaça eqüivale, quanto à ingestão de álcool abstrato, a cerca de 60 litros de vinho per capita, "grosso modo". Além dos sérios riscos da incorporação de metanol e aldeído acético durante o processo de destilação da cachaça, há que se considerar o abismo que separa, sob vários aspectos, os efeitos do álcool ingerido através de 15 litros de cachaça e os efeitos da mesma quantidade de álcool ingerido de forma diluída, através de 60 litros de vinho. Igualmente importante observar, nesse sentido, que o vinho em geral acompanha as refeições, sabendo-se que o grau de absorção do álcool, bem como a intensidade de sua incorporação à corrente sangüínea, estão intimamente relacionados à maior ou menor presença de alimentos no trato digestivo - especificamente no estômago e intestinos - no momento do consumo. Afora a completa ausência dos inúmeros nutrientes e componentes benéficos do vinho, a cachaça causa uma agressão imediata ao organismo, pelo impacto devastador do álcool concentrado. Não é do escopo deste artigo discorrer detalhadamente acerca do efeito do álcool em dose elevada sobre as mucosas e sobre o organismo como um todo. Nem tampouco é sensato evocar a grandeza do vinho através do desprezo à cachaça. Trata-se de produtos totalmente distintos, nitidamente isolados por um abismo cultural e sócio-econômico. O vinho acompanha a nossa cultura desde a aurora dos tempos; os destilados são mais recentes, mas não seremos nós, os enófilos, que iremos julgar ou repreender a eventual preferência pelos destilados. A questão aqui é invocar coerência e um mínimo de lucidez, quando o tema é saúde pública e impostos. É preciso evitar confusões e engodos: não estamos questionando aqui a cocaína ou o uísque escocês, drogas elitizadas, caras e de difícil acesso. O foco da discussão é a barata, acessível, e amplamente difundida cachaça. Comparar vinho e cachaça, quanto aos níveis de ingestão de álcool, é tão absurdo quanto comparar o sal, que discretamente presente traz vida a qualquer alimento, e a ingestão de um saleiro inteiro. Ninguém consome um bom prato pelo sal que contém. Como ninguém consome um bom vinho pelo álcool. Sendo de amplo conhecimento a importância cultural e os comprovados benefícios do vinho, entre eles a própria prevenção do alcoolismo, e sendo que o vinho, mesmo que tributado como alimento, continuará eternamente um produto caro, só nos resta descobrir quais interesses subjacentes moveram os defensores do veto ao projeto de lei que enquadra o vinho como alimento. Seria tão somente a tentação irrefletida e inconsequente de pairar alguns segundos sob os holofotes da mídia? Onde estarão esses austeros cavaleiros abstêmios na hora de erguer as espadas contra a devastadora epidemia que grassa sobre as camadas desassistidas; mais vergonhosamente sobre as populações autóctones, embebidas de cachaça barata?
Trecho de um texto de Marco Danielle.
Fonte : http://www.tormentas.com.br/
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