sábado, 22 de fevereiro de 2014

O El Niño e a qualidade de vinhos finos da Serra Gaúcha

O mercado de vinhos finos no Brasil vem ganhando em importância na medida em que os consumidores têm acesso a um leque maior de produtos com variadas características organolépticas e aprendem a apreciar e comparar os produtos. Isto ocorre, em primeiro lugar, via globalização, com os importados de diversas regiões produtoras; e, em segundo, com a adoção de novas tecnologias na vitivinicultura nacional, sobretudo a partir da década de 1990, tanto no âmbito dos vinhedos quanto no das cantinas de vinificação. 
            Ao considerar que a qualidade dos vinhos é função direta da qualidade da matéria-prima produzida nos vinhedos (as uvas) e da tecnologia adotada para a vinificação, verifica-se que o clima e as oscilações climáticas ganham importância primordial no planejamento da vinificação de um produto que apresenta alta elasticidade-preço em relação à qualidade. 
            Além disso, o estudo e o acompanhamento climático na região produtora de vinhos de qualidade são fundamentais, dada a natureza idiossincrática de um produto não só em termos de produção como também de avaliação organoléptica. E o El Niño é um dos fenômenos climáticos de escala global mais freqüentes em ocorrência, além de ser um dos mais determinantes sobre a produção agrícola. 
            Na região da Serra Gaúcha, geograficamente conhecida como Encosta Superior do Nordeste do Estado do Rio Grande do Sul, está localizado o maior e mais tradicional pólo produtor de uvas para vinificação do Brasil. Sabe-se que, nesta região, as safras de vinho fino são muito afetadas pelas oscilações climáticas, principalmente em decorrência do El Niño-Oscilação Sul (ENOS). 
            Assim, como primeira abordagem para analisar a influência do ENOS sobre a qualidade do vinho fino no Brasil, foi escolhida a Serra Gaúcha por vários motivos: pela sua importância econômica e histórica na vitivinicultura nacional; pela disponibilidade bibliográfica sobre a qualidade das suas safras por um período analisável; e, principalmente pela grande vulnerabilidade da região às oscilações climáticas na produção de uvas V. vinifera destinadas à vinificação de vinhos finos. 
            O ENOS é um fenômeno climático relacionado ao aquecimento ou esfriamento anormal das águas superficiais do Oceano Pacífico Equatorial que acarreta a mudança no padrão de comportamento do clima global. Com duas fases distintas, El Niño (fase quente) e La Niña (fase fria), é o fenômeno climático mais estudado e monitorado no mundo, com vários indicadores climáticos – como temperatura e anomalia de temperatura superficial e profunda do oceano – mapeados periodicamente em toda a faixa do oceano denominada Região de El Niño. 
            Os efeitos típicos das fases de El Niño e La Niña sobre o clima global são amplamente conhecidos e até previsíveis. Entretanto, o ENOS típico é raro. Variações em torno de um denominador comum ocorrem freqüentemente, embora algumas ocorrências tenham alto grau de semelhança em termos de intensidade, durabilidade e efeitos sobre o clima global – com ENOS típico ou não. Assim, o aquecimento/esfriamento anormal de um imenso volume de águas influencia o padrão de todo o entorno e o clima global. 
            A anomalia de temperatura das águas superficiais do Pacífico Equatorial – diferença entre a temperatura observada e a média histórica na Região de Niño . em média móvel trimestral – apresentou, de janeiro de 1984 a dezembro de 2005, ciclos irregulares e grande oscilação térmica .
            Verifica-se a escassez de dados criteriosos sobre a qualidade das safras de vinho fino no Brasil, que abranjam um período estatisticamente analisável, embora as séries históricas sobre as variáveis relativas ao ENOS sejam amplamente divulgadas e acessíveis. 
            As notas obtidas pelos vinhos finos da Serra Gaúcha (figura 2), entre as safras 1985 e 2005 (no total de 21 safras), variaram bastante, embora apresentassem comportamento comum para as safras relativas às ocorrências do aquecimento anormal no Pacífico Equatorial (El Niño). Notas abaixo da média histórica do período foram observadas em sete safras relacionadas ao El Niño.
            No período analisado, as safras consideradas muito boas (nota 9) estavam relacionadas à La Niña (safras 1985 e 1999) e ao ano normal, ou seja, sem ocorrência de ENOS (safra 2004). As safras excepcionais (nota 10) relacionam-se a anos neutros, porém um ano após a ocorrência de La Niña (safra 1986) e dois anos após La Niña (safras 1991 e 2002) e ao El Niño (safra 2005). Ressalte-se, entretanto, que neste último caso o aquecimento anormal das águas do Pacífico Equatorial não só foi menos intenso como também foi de curta duração, tangenciando o limiar do critério definido para a ocorrência do fenômeno. 
            A produção de vinho fino na Serra Gaúcha, nas safras relacionadas com o fenômeno El Niño, foi prejudicada freqüentemente pelo excesso de chuvas na época de desenvolvimento das bagas – com efeitos sobre o teor de açúcar, amadurecimento aromático e amadurecimento fenólico –, afetando assim o amadurecimento enológico (o momento justo de colheita), durante a vindima. Na citada safra 2005, ocorreu comportamento climático oposto: a estiagem nas fases determinantes, sobretudo em termos de teor de açúcar nas bagas, dispensou a usual chaptalização (isto é, adição de açúcar no mosto para a fermentação alcoólica) e permitiu a colheita em condições ideais de tempo. 
            No período analisado, as safras consideradas excepcionais, exceto a de 2005, ocorreram sintomaticamente nos anos considerados normais, porém um ano após a ocorrência da La Niña, na safra 1986, e dois anos após o mesmo fenômeno nas safras 1999 e 2002. Tratam-se de safras que passaram por temperaturas mais baixas nos vinhedos ou por menor precipitação pluviométrica, fatos que afetam a qualidade da dormência nas videiras – necessária para a produção de bagas de qualidade – assim como no nível do stress térmico ou hídrico apropriado nas fases de desenvolvimento vegetativo e de formação dos frutos. 
            Fica evidente, assim, a influência do clima sobre a qualidade do vinho fino da Serra Gaúcha. Dados o momento histórico vivido pela vitivinicultura brasileira, principalmente a gaúcha, e a importância do diferencial de qualidade sobre os níveis de preços de equilíbrio, o acompanhamento climático e a análise das suas implicações na qualidade do vinho fino brasileiro fazem-se necessários, tanto na tomada de decisão para implantar a vitivinicultura quanto para maximizar o lucro nas culturas já instaladas, abarcando, assim, um dos fatores – o clima – que faz parte do conceito de terroir.

Autor :  Ikuyo Kiyuna

Fonte : http://www.iea.sp.gov.br/out/index.php

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