Vítima das pressões de um lobby político vazio e demagógico, orquestrado por uma pequena banda tão desafinada quanto barulhenta, o governador do Estado foi constrangido a não sancionar a lei que reconheceria o vinho como alimento, proposta pelo deputado Estilac Xavier e aprovada por unanimidade pela Assembléia Legislativa. Dia 22 de setembro e 2006, após uma longa dor de cabeça, Germano Rigotto, infelizmente, terminou por vetar a lei.
Os defensores do veto ao projeto de lei que classifica o vinho, para efeito fiscal, como alimento, me parecem movidos por uma lógica irredutível e inexorável. Mas como o vinho funde-se com a própria aventura humana numa experiência que paira em esfera metafísica, para muito além das fronteiras cartesianas, portanto incompatível com os ditames da lógica pura, irredutível e inexorável, é bem provável que pouco adiante tentar demovê-los deste pragmatismo ferrenho pelas vias da filosofia, da poesia, ou mesmo da ciência e da economia. Mas antes que mais gente se confunda nessa demagogia, nunca é tarde para tentarmos.
Puritanismos de botequim à parte, concordo incondicionalmente com os insurgentes em um só ponto: de fato, não devemos imitar a Espanha ou quem quer que seja. Devemos tentar dar o exemplo antes. Precisamos ostentar uma nesga sequer de personalidade, em vez de cruzar os braços eternamente a esperar que os outros, lá fora, tudo decidam por nós. Sancionada a proposta do deputado Estilac Xavier, pois, inverteríamos a regra de pairar em geral 30 anos atrás no curso da História, e excepcionalmente uma vez, se não estivéssemos contribuindo com um pensamento de todo original para o mundo, ao menos o estaríamos apoiando.
A condição humana não é, definitivamente, uma experiência lógica, a menos que abstraia-se do homem a alma e a emoção. Isso feito, poderia-se então finalmente abstrair o álcool e a religião - psicotrópicos intimamente relacionados à humanidade desde os primórdios da razão; desde o momento em que a aspereza da realidade e a consciência da própria finitude passaram a atormentar o homem como um pesadelo onipresente, flagelando, entre todos os animais, exclusivamente a ele. Dos dois estupefacientes citados, porém, o último tem causado mais dano e torpor.
Das bebidas que contêm álcool, contudo, apenas o vinho tem o mágico dom de trazer em si o seu próprio antídoto. Benjamin Franklin não exagerou ao afirmar que "o vinho é a prova cabal de que Deus nos ama e nos quer felizes". Mas todo o mistério e a magia do vinho são incompreensíveis ao pragmático mais insensível. O vinho é, antes de tudo, uma experiência estética. E a quem desdenha os 87,5% de alimento preservados neste divino bálsamo graças aos em geral 12,5% de álcool de sua composição, de nada adiantará citar os ensinamentos de Hipócrates, de Eurípedes, de Plínio, de Platão, de Cícero, de Sócrates, de Sêneca, de Horácio, de Rabelais, de Pasteur, de Fleming, de Montesquieu, de Lutero, de T.Jefferson, de Goethe, de Cristo, enfim, a lista de enófilos insignes é infinita. Pois é justo graças a esses 12,5% de álcool que os restantes 87,5% de puro alimento provido pela generosa videira puderam preservar-se ao longo da História, fazendo com que seus nutritivos frutos, pródigos em qualidades alimentares, in natura anuais e efêmeros, pudessem durar mais e ser transportados, resistindo ao calor e aos meses, nutrindo, curando, alegrando e perfumando o áspero, austero, por vezes tristonho, e irreversivelmente trágico destino de cada indivíduo, ao longo da trajetória humana - durante os últimos 8 mil anos. E mesmo após tantos milênios, entretanto, ainda desconhecemos alimento capaz de conservar-se mais tempo.
Os em média 12,5% de álcool do vinho são diluídos em 87,5% de pura fruta, revelando qualidades naturais que não se encontram no próprio suco in natura das uvas: conservação praticamente indeterminada e, graças à ação solvente do álcool, maior extração de compostos fenólicos da casca e sementes - de efeito protetor antioxidante. Há quem vá ainda mais longe, em considerações científicas sobre o efeito do álcool como protetor cardiovascular - se aplicado em doses homeopáticas. Ou seja, o efeito benéfico do vinho não estaria restrito exclusivamente aos flavonóides e outros atributos dos 87,5% de fruta da composição. Mas também ao próprio álcool em si, em baixa dose. Conferência sobre o tema teve espaço aos 4 de maio de 2006, no XVIII Congresso de Cardiologia da Bahia, sendo conferencista o Dr. Flávio Danni Fuchs, coordenador da Comissão do Programa de Pós-graduação em Medicina da UFRGS e membro do Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul. Além dos cardiologistas, o vinho é defendido por outras comunidades de especialistas, como os médicos dedicados à hipertensão. As frases abaixo foram extraídas fac símile do site da Sociedade Brasileira de Hipertensão (sbh.org.br), mantido pelo governo brasileiro:
(...) "Segundo Lucélia Magalhães, da Secretaria de Estado de Saúde da Bahia e Fernando Almeida, professor da PUC de Sorocaba, somente o uso de doses baixas, até mais ou menos 210ml, principalmente de vinho, é que conferem proteção. (...) Em 1915 a hipertensão foi evidenciada em trabalhadores de minas de carvão na França que ingeriam muita bebida. (...) Entretanto, é verdade que um consumo baixo ? "uma garrafa de vinho de 700ml para um casal, por exemplo" ? oferece benefícios protetores."
O vinho foi o primeiro remédio conhecido, e o anti-séptico por excelência da Antigüidade Clássica, desinfetando feridas e evitando a morte antes mesmo de instituir-se noção de higiene e profilaxia. Entre 1.348 e 1.400 da Baixa Idade Média, quando a Peste Negra grassou pela Europa dizimando um terço da população, o vinho misturado à água tornava essa última menos mortal, tendo tal precaução se estendido até os exércitos napoleônicos, e, quem sabe, além. E ainda hoje a água é mortal, diga-se de passagem. Bastaria remontarmos aos tempos dos Cruzados para constatar: uma das torturas mais cruéis da época consistia em obrigar as vítimas a beber água até o rompimento do estômago. Contemplando portanto o passado e o presente, e vislumbrando, talvez, o futuro, as virtudes do vinho em benefício do homem superam de longe os excessos do vício.
Para a água ou para o vinho, portanto, vale o mais sábio preceito grego, o conselho de Dédalo a Ícaro: o caminho do meio é o melhor, pois os extremos são sempre prejudiciais. A virtude, definitivamente, não habita os extremos.
O vinho é um elo civilizado e civilizante da humanidade, fundindo-se na própria História das mais altas culturas. Hubert de Montille, com grande lucidez, afirma que "onde há vinhas há civilização, e não existe barbárie": Enquanto os destilados fortes, grandes responsáveis pelo alcoolismo endêmico e letal, têm o consumo controlado e coibido por preços proibitivos no mundo civilizado, aqui uma garrafa plástica de cachaça pode chegar ao consumidor final quase ao preço de água mineral. O consumo nacional de cachaça, portanto, é de 15 litros per capita, contra 1,8 litros de vinho. Atualmente a legislação limita o teor alcoólico da aguardente em 54% e da cachaça em 48%, ou seja, o consumo brasileiro de cachaça eqüivale, quanto à ingestão de álcool abstrato, a cerca de 60 litros de vinho per capita, "grosso modo". Além dos sérios riscos da incorporação de metanol e aldeído acético durante o processo de destilação da cachaça, há que se considerar o abismo que separa, sob vários aspectos, os efeitos do álcool ingerido através de 15 litros de cachaça e os efeitos da mesma quantidade de álcool ingerido de forma diluída, através de 60 litros de vinho. Igualmente importante observar, nesse sentido, que o vinho em geral acompanha as refeições, sabendo-se que o grau de absorção do álcool, bem como a intensidade de sua incorporação à corrente sangüínea, estão intimamente relacionados à maior ou menor presença de alimentos no trato digestivo - especificamente no estômago e intestinos - no momento do consumo. Afora a completa ausência dos inúmeros nutrientes e componentes benéficos do vinho, a cachaça causa uma agressão imediata ao organismo, pelo impacto devastador do álcool concentrado. Não é do escopo deste artigo discorrer detalhadamente acerca do efeito do álcool em dose elevada sobre as mucosas e sobre o organismo como um todo. Nem tampouco é sensato evocar a grandeza do vinho através do desprezo à cachaça. Trata-se de produtos totalmente distintos, nitidamente isolados por um abismo cultural e sócio-econômico. O vinho acompanha a nossa cultura desde a aurora dos tempos; os destilados são mais recentes, mas não seremos nós, os enófilos, que iremos julgar ou repreender a eventual preferência pelos destilados. A questão aqui é invocar coerência e um mínimo de lucidez, quando o tema é saúde pública e impostos. É preciso evitar confusões e engôdos: não estamos questionando aqui a cocaína ou o uísque escocês, drogas elitizadas, caras e de difícil acesso. O foco da discussão é a barata, acessível, e amplamente difundida cachaça. Comparar vinho e cachaça, quanto aos níveis de ingestão de álcool, é tão absurdo quanto comparar o sal, que discretamente presente traz vida a qualquer alimento, e a ingestão de um saleiro inteiro. Ninguém consome um bom prato pelo sal que contém. Como ninguém consome um bom vinho pelo álcool. Sendo de amplo conhecimento a importância cultural e os comprovados benefícios do vinho, entre eles a própria prevenção do alcoolismo, e sendo que o vinho, mesmo que tributado como alimento, continuará eternamente um produto caro, só nos resta descobrir quais interesses subjacentes moveram os defensores do veto ao projeto de lei que enquadra o vinho como alimento. Seria tão somente a tentação irrefletida e inconseqüente de pairar alguns segundos sob os holofotes da mídia? Onde estarão esses austeros cavaleiros abstêmios na hora de erguer as espadas contra a devastadora epidemia que grassa sobre as camadas desassistidas; mais vergonhosamente sobre as populações autóctones, embebidas de cachaça barata?
Em 1833 o escritor inglês Cyrus Redding comenta, em uma obra sobre o vinho: "onde o gosto por destilados é grande, o paladar para o vinho diminui. Como a mão de um ferreiro é endurecida pelo aço quente e não consegue mais distinguir objetos pelo tato, da mesma forma o paladar de quem toma destilados está perdido para o saudável frescor do vinho".
No livro Uma breve história do vinho, Rod Phillips compila uma sábia máxima antiga que afirma: "em lares onde entra o vinho, sai o uísque". E a prática confirma que num lar que incentiva a cultura e o bom hábito do vinho, os destilados perdem espaço. Eis o antídoto que o vinho traz, em si, contra o álcool, por meio do refinamento do paladar, das boas maneiras, das regras de etiqueta e sociabilidade, da boa mesa; e do interesse cultural, histórico e geográfico, pois o vinho é, acima de tudo, um elemento de civilização; inalienável expressão de um povo, de sua terra, e de seu clima.
A medicina e a mídia mundiais jamais foram tão unânimes acerca dos benefícios do vinho, e vivemos o maior boom editorial de todos os tempos sobre o tema. Mesmo assim, jamais se moveu contra a deletéria cachaça e demais destilados tão fervoroso lobby quanto este, que ora se insurge em detrimento do vinho. Numa nação devastada por vícios e mazelas de todos os tipos e ordens possíveis e imagináveis, cujas causas e conseqüências residem quase todas na proliferação da pobreza, causa-me espécie tanto paternalismo dirigido às classes média e alta - as que mais têm acesso ao vinho, e que se têm demonstrado, de longe, as mais responsáveis na educação dos filhos, as que mais pagam impostos, e as únicas que dispensam o sistema público de saúde. Dito isso, não seria mais sensato que os "assistentes sociais" que ora se preocupam tanto com os mais abastados fossem tratar um pouco dos pobres? Porque para esses e seus abundantes rebentos sim, a cachaça representa uma uma derradeira catástrofe.
Frente a tal incongruência, desvela-se um certo oportunismo. Como o tema se presta à polêmica demagógica, a mídia termina abrindo as portas àqueles que, pela brecha disponível em nome da ciência, encontram um solo fértil para o marketing pessoal barato. Afinal, nenhum filósofo chamará a atenção da imprensa dizendo que Deus existe, pois terá muito mais chance afirmando o contrário. Eis aqui, talvez, a explicação para esse grupo de médicos contrários ao reconhecimento do vinho como alimento. Nessas horas lamento o silêncio dos eminentes médicos enófilos do nosso país. Na edição de fevereiro de 2004 de sua revista médica, a Unimed, frondosa seguradora privada de saúde, consagrou a capa e quatro páginas aos benefícios do consumo racional de vinho, fomentando seu uso, me parece, no mesmo princípio que move uma seguradora de carros a incentivar o uso do alarme. Ambas têm um interesse comum: evitar ao máximo os sinistros.
Frustrados, contudo, todos os argumentos da cultura, da história, da filosofia, da ciência, da arte, da espiritualidade, da finesse, resta-nos tentar sensibilizar os indiferentes ao vinho, portanto, com um dado econômico: mais de 50% do preço de uma garrafa de vinho, no nosso país, são impostos que incidem em cascata. A média mundial é em torno de 15%, e na Espanha é zero. O veto ao projeto de lei que defende o vinho como alimento é um retrocesso onde só perde o povo e o vinho brasileiros: triunfam a cachaça e o vinho estrangeiro. Veta-se, ao mesmo tempo, a valorização de uma cultura histórica regional, e o fomento à geração de riqueza local, criadora de bem-estar e empregos. Incentiva-se a evasão de divisas, colaborando para que levem uma fatia a mais dos nossos parcos vinténs.
Dito isso, se ainda assim os marketeiros do veto seguirem insensivelmente implacáveis, não nos restará que uma única conclusão, fiel ao bom-humor e espirituosidade do vinho, e sem esconder uma ponta de verdade: parafraseando Humphrey Bogart, "o grande problema do mundo é que, infelizmente, a maioria das pessoas está uma dose abaixo do normal".
Sou um grande defensor do vinho e enófilo apaixonado
ResponderExcluirEntretanto, não creio que a proporção de apenas 12,5% de alcool seja suficiente para considerar o vinho como alimento.
O que diríamos da cerveja, com seus, em média, 4% apenas?
A cerveja só tem carboidratos e álcool .O vinho é um alimento mais rico em nutriente,além disso,a cerveja já é muito barata,não precisa de incentivos.Um abraço , Gustavo Silveira.
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